Que a Inteligência Artificial – IA – é uma das grandes fronteiras tecnológicas da história da humanidade, assim como foram a Revolução Industrial e a Internet, a maioria das pessoas já sabe. No entanto, ainda há certa dificuldade de imaginar como ela pode revolucionar ainda mais o nosso dia-a-dia.
Para o agronegócio, as possibilidades são inúmeras. O setor é um case de sucesso, reconhecidamente avançado no Brasil. Temos exemplos de desenvolvimento único, com a adaptação de tecnologias de plantio e sementes, que tiveram que ser totalmente adaptadas ao clima tropical, uma vez que foram desenvolvidas para clima temperado, como na Europa e Estados Unidos.
“Com IA, o céu é o limite”, diz Marcelo Giovanetti Canteri, professor do Departamento de Agronomia da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e gerente de projetos do Centro de Inteligência Artificial no Agro (Napi CIA-Agro), da Fundação Araucária. No entanto, se os avanços da tecnologia já existem, só serão notáveis por aqui quando houver uma melhora na captação de dados.
De acordo com Jayme Barbedo, pesquisador da Embrapa Agricultura Digital, há dois aspectos em que a IA pode ter um grande impacto no agronegócio. Em primeiro lugar, à medida que mais dados de diferentes tipos são capturados, fica mais difícil extrair informação útil utilizando apenas o cérebro humano ou técnicas computacionais convencionais.
“As novas técnicas de IA, e o aprendizado profundo em particular, são capazes de extrair informação a partir de grandes bases de dados mesmo quando essa informação está ‘escondida’ em meio a ruído ou dados irrelevantes. Em segundo lugar, ferramentas de IA permitem o monitoramento constante dos diferentes processos agrícolas, isso desde que os dados corretos sejam capturados. E como resultado faz com que seja possível tomar decisões de maneira muito mais rápida e assertiva”, explica ele.
Já existem alguns exemplos em prática, mas ainda tímidos. “Muitos sistemas baseados em IA estão em desenvolvimento, porém a maior parte deles ainda requer maior robustez para serem utilizados na prática. Porém, há alguns casos de sucesso que já vêm sendo utilizados, como a ordenha automática de vacas e a detecção automática de ervas daninhas para aplicação localizada dos defensivos agrícolas”, diz Barbedo.
Irrigação, robótica e outras áreas têm apresentado alguns exemplos no mundo afora, como colheita automatizada. Neste caso, robôs identificam por câmeras as frutas, analisam com o banco de dados de IA e decidem se a colhem ou não.
Há também alguns casos já desenvolvidos aqui no Paraná, de acordo com Marcelo Canteri. “Nosso departamento tem desenvolvido sistemas para analisar os 200 coletores de esporos espalhados pelo Paraná. Tradicionalmente, essa análise microscópica e laboratorial é feita pelos humanos, duas vezes por semana. Em um trabalho conjunto da UEL e UTFPR [Universidade Tecnológica Federal do Paraná], agora essa leitura é feita de forma automatizada”. Também em Londrina, uma empresa criou uma análise de imagens de carcaças de bovinos, conseguindo prever se elas serão de qualidade ou não.
O segundo exemplo, segundo o professor Canteri, é o de uma startup incubada na região de Londrina que monitora galpões, portas, janelas e maquinários nas fazendas. “Um galpão aberto e acometido pela chuva pode danificar os produtos armazenados, como o adubo por exemplo. A IA também proporciona essas soluções simples”.
Tecnologias ainda distantes da ponta
No entanto, essas soluções ainda estão distantes da maioria. Num primeiro momento a IA vai chegar somente aos grandes produtores, assim como acontece em todas as demais áreas. À medida que isso for se popularizando, a tecnologia vai chegando a todos. Há uma democratização muito rápida, segundo Marcelo Canteri.
“O equipamento para ordenha automática é relativamente caro e, por enquanto, acessível apenas àqueles mais capitalizados. A detecção de ervas daninhas já vem embarcada em muitas máquinas agrícolas, sendo uma realidade especialmente no caso de grãos. Outras tecnologias devem chegar em breve, como por exemplo o monitoramento de gado por drones, a detecção de estresses [doenças, pragas, deficiências nutricionais] através de aplicativos de celular ou sensores em campo, bem como assistentes eletrônicos baseados em tecnologias do tipo do ChatGPT”, comenta Jayme Barbedo.
O que esperar e os possíveis gargalos
O potencial para embarcar novas técnicas baseadas em IA é muito grande, de acordo com os pesquisadores, porém há um desafio que é comum a quase todas elas e que ainda precisa ser vencido. Especialmente no caso de tecnologias utilizadas em campo, os modelos de inteligência artificial precisam estar preparados para lidar com toda a variedade de condições encontradas na prática.
“Em campo, há muitos fatores que aumentam essa variabilidade, como clima, hora do dia, ângulo de insolação, estágio de desenvolvimento da lavoura, calibragem dos sensores etc. Então, é necessária uma quantidade enorme de dados, o que nem sempre está disponível. Então, embora as técnicas de IA tenham se desenvolvido a ponto de serem capazes de resolver praticamente qualquer problema de classificação, os dados disponíveis para seu treinamento nem sempre estão na quantidade e qualidade necessária para gerar tecnologias realmente robustas. Assim, ainda serão necessários muitos esforços na construção de bases de dados realmente representativas”, analisa Barbedo.
“Precisamos da extração de dados com qualidade para ela [a Inteligência Artificial] atuar em sua plenitude, de forma digitalizada. Com a chegada da Internet, em 1990, ninguém imaginava que reservaríamos um quarto por um aplicativo em qualquer lugar do mundo, que teríamos o Uber ou outras tecnologias revolucionárias. Estamos nesse início, onde muito será desenvolvido. No campo, muito mais”, diz Canteri.
Tecnologias relativamente simples têm inspirado as empresas desenvolvedoras, seguindo exemplos como o do WhatsApp. Há um grande potencial para que isso ocorra no caso das tecnologias baseadas em IA, ou seja, embora as técnicas por trás dessas tecnologias possam ser complexas e sofisticadas, a tendência é que os produtos finais sejam amigáveis e de fácil utilização. Soluções simples, mas efeitos complexos.
Os pesquisadores também afirmam que outro setor, o da indústria da transformação de alimentos, deve ter um salto muito grande. “Por exemplo, a contaminação pós-colheita por insetos, toxinas e outros contaminantes é um problema sério, e a legislação está cada vez mais rigorosa nesse sentido. Já existem tecnologias baseadas em sofisticadas câmeras hiperespectrais capazes de detectar esses contaminantes em lotes específicos, tornando a triagem muito mais rápida e garantindo que o produto que chega ao consumidor final tem a melhor qualidade possível”, explica Canteri.
O professor da UEL aponta para um grande avanço em um setor bastante em evidência no mercado de consumidores, que é a personalização nutricional. Hoje vemos muitos produtos que contém alergênicos, que impedem o consumo dos acometidos por essas doenças. Mas com o avanço da IA, cada vez mais produtos personalizados estarão disponíveis nas gôndolas e desperdícios serão evitados.
“Há técnicas bastante sofisticadas capazes de ‘enxergar’ o real estado dos alimentos mesmo quando não há sinais visualmente detectáveis. Essa triagem mais refinada não apenas permitirá que alimentos não apropriados para consumo sejam descartados ou usados para outras finalidades, mas também terá o potencial de evitar o descarte de alimentos por causa de suspeitas de contaminação que, muitas vezes, são infundadas. É importante destacar que a ideia da IA no agro não é substituir o ser humano, e sim oferecer ferramentas que tornem todo o processo mais rápido, seguro e confiável, desde a semeadura até a chegada dos produtos nas mãos dos consumidores”, finaliza Jayme Barbedo, pesquisador da Embrapa Agricultura Digital.