A conversa começou no fim de tarde em Curitiba, dentro de um carro, em meio ao trânsito arrastado, voltando do aeroporto.
O motorista do aplicativo (parceiro da 99, Uber e outros) falava sobre sua experiência e os desafios de atuar com os apps. Não se limitava a tarifas ou tecnologia: falava das relações humanas que emergiam dessa rotina.
Contou que participa de um grupo de motoristas que se organiza para obter descontos em manutenção, combustível e seguros. Mais do que isso, o grupo funciona como uma rede de apoio mútuo: em casos de assalto, acidente ou qualquer situação de risco, os demais se mobilizam para ajudar.
Mas o que mais chamou atenção foi a frase: “A gente se ajuda porque ninguém mais ajuda.”
Essa sentença resume a ambiguidade que este artigo busca explorar: a coexistência entre solidariedade e vulnerabilidade no universo do trabalho em plataformas.
O vácuo entre o algoritmo e o humano
A ascensão das plataformas digitais transformou radicalmente o modo como o trabalho é mediado.
Laços são fragmentados, fronteiras entre autonomia e subordinação se diluem e uma nova arquitetura de poder, centrada em dados e algoritmos, é criada.
Nesse contexto, motoristas e entregadores vivem o paradoxo de serem formalmente autônomos, mas rigidamente controlados por métricas invisíveis e sistemas de reputação.
Redes cooperativas como resistência
Nas margens desse modelo concentrador, emergem redes cooperativas criadas pelos próprios motoristas. São respostas orgânicas às lacunas deixadas pelas empresas e pelo Estado.
Esses grupos funcionam como infraestruturas sociais informais: compartilham informações de segurança, organizam apoio em emergências e constroem parcerias para reduzir custos e ampliar benefícios.
Tais práticas expressam o que Alex Wood e Mark Graham (2019) chamam de resistência digital localizada, formas de ação coletiva articuladas no ambiente digital, mas com efeitos concretos no cotidiano.
A força do contexto local
Embora conectadas a plataformas globais, essas redes assumem características distintas conforme o país e a cultura em que se inserem.
Em contextos como o brasileiro, onde as instituições públicas de proteção social são frágeis e o custo de vida urbano é alto, os grupos de motoristas tendem a enfatizar o apoio mútuo e as estratégias de segurança, reforçando o laço comunitário.
Já em países com maior regulação trabalhista ou infraestrutura de transporte consolidada, as associações costumam se concentrar em negociação de tarifas, representação política ou benefícios formais.
Assim, o mesmo modelo tecnológico global dá origem a ecossistemas cooperativos locais, enraizados no “jeitão” de cada sociedade, reflexo de valores culturais, condições econômicas e formas de sociabilidade que as plataformas, por sua natureza algorítmica, não conseguem captar nem reproduzir.
O comum como prática social
Essas experiências dialogam com o conceito de comum, de Pierre Dardot e Christian Laval (2017): práticas de cooperação e autogestão que emergem fora das estruturas institucionais e criam formas de vida coletiva.
O “comum” aqui não é um ideal romântico, mas uma prática concreta de reciprocidade, cuidado e confiança, capaz de transformar vulnerabilidade em pertencimento.
Autogestão, resistência e precarização
Ocorre que essa potência é atravessada por contradições. Ao mesmo tempo em que essas redes compensam a ausência de proteção institucional, também revelam o vazio deixado por ela.
Elas surgem porque faltam políticas públicas adequadas e porque as plataformas externalizam custos e responsabilidades. Assim, a autogestão se torna tanto um ato de resistência quanto um sintoma de uma precarização estrutural.
Essa contradição é amplificada pelo que Byung-Chul Han (2014) descreve como a lógica da autoexploração mascarada de liberdade, em que o trabalhador acredita ser empreendedor de si mesmo enquanto é constantemente medido e controlado.
Novas formas de organização de classe
O desafio ético e político está em reconhecer essas redes sem romantizá-las.
Elas não substituem sindicatos nem políticas públicas, mas evidenciam o surgimento de novas formas de organização de classe, horizontais, descentralizadas e conectadas por vínculos digitais.
A oportunidade das plataformas
Para as próprias plataformas, há uma oportunidade: ouvir essas comunidades e transformar a escuta ativa em vantagem competitiva e social.
Incorporar as demandas locais na formulação de políticas de segurança, benefícios e governança poderia inaugurar um modelo de cogestão-sócio-algorítmica, em que trabalhadores participem da construção das próprias regras do sistema.
Essa é a direção que Trebor Scholz (2016) sugere ao propor o conceito de cooperativismo de plataforma, a apropriação das tecnologias digitais para criar arranjos mais justos, transparentes e democráticos.
Solidariedade, sobrevivência e o futuro do trabalho
Essas duas faces, solidariedade e sobrevivência, coexistem em tensão.
As redes cooperativas de motoristas são, ao mesmo tempo, expressão de resistência e evidência de vulnerabilidade.
Elas reconstroem laços humanos em um ambiente digital que os desintegra, mas também revelam o quanto o trabalho em plataformas depende daquilo que ele próprio destrói: a confiança e a cooperação.
Entre o algoritmo e a rua, o motorista encontra abrigo nos vínculos que cria, frágeis, informais, mas profundamente humanos.
O que nasce como estratégia de sobrevivência pode se tornar base para uma nova ética do trabalho digital, uma ética da interdependência.
Transformar gesto em estrutura
Essas formas de organização revelam que a inovação não vem apenas do código-fonte, mas da capacidade social de criar vínculos.
Elas antecipam modelos de governança que unem eficiência tecnológica e solidariedade humana, desafiando o monopólio algorítmico das grandes corporações.
Para que essa potência se realize plenamente, é preciso transformar a solidariedade em estrutura reconhecida, não apenas em gesto. Isso implica em:
- incorporar mecanismos de participação e escuta ativa nas próprias plataformas;
- desenvolver políticas públicas de apoio ao cooperativismo digital;
- fomentar pesquisas e laboratórios de inovação social que explorem modelos híbridos entre mercado, Estado e comum.
Entre o dado e o cuidado
Entre o dado e o cuidado, talvez esteja nascendo a próxima revolução silenciosa do trabalho digital, aquela em que a inovação deixa de ser apenas técnica e passa a ser também ética e social.
Rafael de Tarso é palestrante, consultor e professor com mais de 20 anos de experiência em inovação, transformação digital e Indústria 4.0. Já impactou mais de 180 empresas e 6 mil alunos em cursos, workshops e mentorias em todo o Brasil. Atua como assessor na Defensoria Pública do Paraná, liderando iniciativas de inovação e transformação digital no judiciário. Cofundador de startups e programas de inovação, também é professor em MBAs da FGV, PUCPR e ISAE-FGV.
Referências Bibliográficas
• Dardot, P. & Laval, C. (2017). Comum: Ensaio sobre a Revolução no Século XXI. São Paulo: Boitempo;
• Han, B.-C. (2014). Psicopolítica: O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Lisboa: Relógio D’Água;
• Scholz, T. (2016). Platform Cooperativism: Challenging the Corporate Sharing Economy. New York: Rosa Luxemburg Stiftung;
• Srnicek, N. (2017). Platform Capitalism. Cambridge: Polity Press;
• Wood, A. & Graham, M. (2019). Networked Labour and Digital Resistance. Oxford: Oxford Internet Institute.


