Se a tecnologia não alcança quem mais precisa, ela não serve. Ponto.
E isso ficou ainda mais evidente no XVIII Congresso Paranaense de Recursos Humanos (ConpaRH) 2025, quando mediei o painel “Digitalização sem Desumanização – o equilíbrio possível” com Cristina Pinna e Marcelo Souza. Ali, em meio a dilemas éticos e exemplos que doem na pele, ficou claro: não existe transformação digital séria sem acessibilidade, governança e decisões humanas.
Nesse evento, os profissionais que eu conversei trouxeram exemplos de IA generativa aplicada com dignidade: personalização com limites, consentimento claro e respeito ao usuário como premissa. Também foram reforçados os alertas que todo gestor público ou privado precisa ouvir: escala sem propósito vira violência digital. E ali ficou evidente que acessibilidade não é refinamento — é critério de projeto.
O Brasil já tem 84% dos domicílios conectados — no Sul, 89% — mas seguimos deixando para trás quem deveria ser prioridade: áreas rurais (74%), baixa renda e o público 60+, que no Paraná já soma 1,9 milhão de pessoas. É gente real, com demandas reais, que muitas vezes sai de casa para resolver algo que “era pra ser simples” e volta humilhada por uma tecnologia que não conversa com ela.
O Paraná já tem terreno fértil para isso: o PIÁ simplifica jornadas, a parceria com o Google abriu a porta para um atendimento IA-first, e o ecossistema tecnológico do Estado está maduro. O próximo passo é estratégico: transformar acessibilidade e humanização em padrão — não em “ajuste de versão”.
Para isso, é preciso desenhar serviços com a cabeça no digital, mas o coração no humano. E aqui entra o que eu batizei como Checklist da Humanização sem Desumanização — o conjunto mínimo de compromissos que evita que a tecnologia se torne um filtro de exclusão:
- Acolher antes de automatizar: toda jornada começa pelo olhar para o contexto real do usuário;
- Explicar sem humilhar: linguagem simples que informa, não infantiliza;
- Criar rotas de saída: o usuário nunca deve ficar preso em labirintos digitais;
- Garantir mão humana acessível: handover rápido e competente em situações de vulnerabilidade;
- Testar com quem usa: grupos 60+, baixa escolaridade, baixa visão, mobilidade reduzida; não só TI simulando;
- Cuidar da continuidade: o que o sistema sabe precisa acompanhar o usuário — sem reiniciar a história a cada canal;
- Praticar governança viva: medir impacto, corrigir vieses, atualizar modelos e proteger dados com coerência.
Esse checklist, quando vira critério, muda tudo. Ele transforma “atendimento digital” em “atendimento de verdade”. E mostra que o problema nunca foi a tecnologia — foi o desenho apressado, feito de dentro pra fora, que pune quem deveria proteger.
Aprendemos (na marra) que presença física ainda importa. Não como resistência ao digital, mas como alternativa essencial para quem vive a exclusão silenciosa. Aprendemos que texto claro com áudio resolve o que nenhum manual técnico resolve; que voz não é tendência futurista, é acessibilidade imediata; e que empatia não se automatiza, ela se treina no time e se traduz em decisões: quando acionar humano, quando simplificar, quando parar de exigir que o usuário execute uma coreografia de prova de vida para provar que existe.
E é justamente aqui que o Paraná pode liderar: temos o ecossistema digital mais estruturado do País, universidades fortes, centros de pesquisa ativos, infraestrutura sólida e uma mentalidade de governo digital que não tem medo de inovar. Mas, acima de tudo, temos uma população 60+ crescente que exige respeito e soluções realistas. Quando um Estado com essa combinação decide que acessibilidade é norma, não exceção, ele não apenas entrega bons serviços ele se torna referência nacional.
Profissionalizar esse desenho dá trabalho — e é exatamente por isso que gera retornos sólidos: diminui retrabalho, reduz reclamações, aumenta confiança pública e amplia o uso dos serviços digitais.
Tecnologia boa é a que cabe na vida das pessoas — todas elas. A digitalização só é completa quando convida para a mesa justamente quem nunca foi realmente ouvido. A próxima fronteira não é IA-first; é IA-first com humanidade.
Fernanda Alves Chaves é especialista em Gestão de Pessoas, fundadora da DualFusion e diretora da ABRH-PR há mais de 30 anos. www.linkedin.com/in/fernandaalveschaves/


