Alerta: o texto a seguir trata de drogas lícitas e ilícitas e de políticas para minimizar os danos à saúde decorrentes de seu uso. Se o assunto é sensível para você, recomendo leituras mais leves em www.curitiba.pr.leg.br
A Câmara de Curitiba está vivendo dias de hipocrisia extrema com a instauração de uma Comissão Processante que pode levar à cassação do mandato da vereadora Professora Angela (PSol). Seu suposto crime: realizar uma audiência pública na qual houve a discussão sobre políticas de redução de danos para usuários de drogas, com a distribuição de material sobre o tema.
A argumentação dos algozes da parlamentar vai desde que ela mentiu sobre o real tema da audiência como fez apologia ao uso de drogas com o material distribuído no evento. O panfleto continha orientações de como usar determinados tipos de entorpecentes com segurança. Algumas mais básicas, como não dividir seringas ao usar injetáveis, outras mais elaboradas, como consumir cogumelos apenas quando estiver cercado de pessoas de confiança.
Consultei uma amiga psicóloga, que deu seu veredito sobre a qualidade do material: pobre de conteúdo e com uso de expressões muito inadequadas, como “comece com doses pequenas”. E que essa iniciativa tem que ser focada em públicos específicos, como pessoas que já são usuários habituais de drogas. Pela redação e formato, distribuí-lo no ambiente da audiência certamente não foi a escolha mais acertada.
Inclusive, a responsável pela elaboração da cartilha foi demitida pela vereadora Giorgia Prates (PT), que fez a nomeação e “emprestava” a servidora comissionada para trabalhar com a Professora Angela. Dizem que isso é normal e corriqueiro na Câmara. Se os órgãos de controle não veem problemas, quem sou eu para discordar.
O ponto é que, mesmo mal feito, o material mirava em um dos pilares usados para tratar a questão do uso de drogas mundialmente: a redução de danos. Pela natureza destrutiva, drogas causam danos à saúde dos usuários por si mesmas. A falta de cuidados básicos em seu uso piora a situação, gerando infecções secundárias (Aids/HIV e hepatites, para ficar com dois exemplos) que geram mais pressão ainda sobre os sistemas de saúde. Reduzir essas intercorrências é fundamental para atacar parte do problema.
Mas, obviamente não é a única. E não pode ser aplicada de forma isolada. Isso é consenso entre especialistas. O problema com o uso de drogas é complexo e requer uma política estruturada em muitas frentes para ser combatido de forma efetiva. E com monitoramento constante. Portugal, que viveu um caos seguido de uma política inicialmente de sucesso, mas que agora está declinando, é o maior exemplo. Leia um artigo, em inglês, que mostra como os cortes de verbas afetaram o até então bem-sucedido programa português.
O fato é que a argumentação dos colegas da vereadora, que o panfleto “ensina” as pessoas a usarem drogas, é risível e hilária. Desde que os seres humanos andam pela Terra, há aqueles que buscam no uso de substâncias experiências de alteração da percepção e fuga da realidade. Na nossa sociedade atual, há os que se contentem com bebidas alcóolicas – aliás, lembre-se dessa redução de danos: se beber, não dirija. Mas há os que vão além, por uma série de problemas e características que não cabe aqui discutir.
O fato é que demonizar a redução de danos não ajuda a construir uma boa política para as drogas. Basicamente, é apostar na abstinência do uso como a principal tática. Bem, nessa tenho que lembrar que a “conservadora” Câmara de Curitiba também deve apostar na abstinência para combater gravidez na adolescência e as Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs).
Acho improvável que a vereadora Professora Ângela escape de uma punição severa pelo caso. E fico triste de ver que o Poder Legislativo municipal se converteu em um lugar em que discussões que deveriam ser sérias se convertem em oportunidades para parlamentares capitalizarem suas redes sociais perante eleitores.
Os curitibanos seguem esperando por soluções efetivas para o problema da população de rua e do aumento do número de usuários de drogas, sendo estes dois públicos que perderam vínculos – familiares, profissionais e de amizade – e precisam desesperadamente de ajuda da sociedade.