Quando falamos em governo digital, muita gente logo associa este conceito ao Gov.br, hoje a porta de entrada mais popular para serviços públicos online, com mais de 168 milhões de usuários em todo o Brasil.
Contudo, a verdade é que digitalizar serviços públicos vai muito além de lançar um aplicativo. É sobre criar experiências que respeitem as diferentes realidades do cidadão, usem dados de forma inteligente e, acima de tudo, envolvam as pessoas no processo.
Na minha visão, o Brasil vive um paradoxo: enquanto boa parte da população já se adaptou a soluções digitais no setor privado, do Pix ao WhatsApp, ainda enfrentamos barreiras no acesso a serviços públicos.
Aqui vai um exemplo: enquanto discutimos autenticação facial em plataformas, ainda temos centenas de milhares de pessoas nas cidades sem acesso a energia elétrica (cerca de 1 milhão de brasileiros, segundo dados do IBGE). Penso que precisamos lidar com essas diferenças sem ignorar a complexidade social e tecnológica do País.
Maturidade digital ainda é desigual
Nos municípios — onde a vida das pessoas realmente acontece — a maturidade digital ainda avança muito lentamente. Em minha experiência, posso afirmar que muitos agentes públicos não estão preparados para criar sistemas e modelos eficientes. Falta infraestrutura tecnológica, recursos financeiros e pessoal qualificado para desenvolver e manter soluções digitais.
Nesse sentido, alguns dos desafios muito frequentes envolvem a integração dos sistemas, cadastro e base de dados, além de informações corretas sobre os cidadãos.
É bastante comum ver cidades com a intenção de lançar aplicativos próprios, mas sem a competência técnica ou o orçamento necessário para garantir sua eficácia e continuidade.
O presencial morreu ou precisa ser melhorado?
Defendo que a transformação digital no setor público não deve eliminar o atendimento presencial, e sim potencializá-lo. Minha lógica consiste no fato de que quanto mais simples e resolutivo for o presencial, mais recursos sobram para melhorar os canais digitais.
O real problema, ao meu ver, é a digitalização sem redesenho: pegar um processo burocrático e colocá-lo na internet, sem repensar a jornada. O resultado disso costuma ser a frustração. Chamo isso de ‘cotovelos digitais’: fluxos que poderiam ser resolvidos em dois cliques, mas que acabam exigindo múltiplos cadastros, senhas e etapas desnecessárias. Você certamente já passou por isso em algum momento, não é mesmo?
Essa visão encontra respaldo em estudos recentes, como o artigo Mapeamento do governo digital no Brasil: uma análise da produção científica (Armoni da Cruz Santos e Gardênia Tereza Jardim Pereira, UEFS), que mostra como a produção acadêmica nacional já identifica a necessidade de unir tecnologia e gestão centrada no cidadão, mas ainda enfrenta desafios para transformar teoria em prática.
Falta de profissionalização na experiência do cidadão
Vejo que ainda falta profissionalização no cuidado com a jornada do cidadão. Embora haja investimento em tecnologia, o foco continua excessivamente nas ferramentas e pouco na experiência. Isso gera sistemas desconectados, burocráticos e que não aproveitam plenamente o potencial do digital.
A solução para o problema, necessariamente, passa por um maior investimento nessa área, o que inclui abrir mais vagas dedicadas à experiência do usuário, estruturar planejamento e capacitar os profissionais para transformar o relacionamento do cidadão com o serviço público.
Exemplos de evolução e um modelo ideal
Existem, sim, bons exemplos. Aplicativos de empresas públicas como Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal melhoraram significativamente a experiência do usuário, oferecendo serviços antes restritos ao atendimento presencial. O setor financeiro, de maneira mais ampla, merece destaque nessa área, bem como as empresas de varejo online (e-commerce), que estão mais antenadas à jornada de compra dos clientes.
Todavia, o modelo que considero ideal é semelhante ao do site e app do Serasa: um único acesso que oferece uma visão completa das informações e serviços disponíveis para o cidadão. Falo aqui de um sistema proativo com alertas e integrado com a ideia de serviço público que vai ao encontro do cidadão, ao invés de se comportar apenas de maneira reativa.
Levo essa ideia para o campo da Justiça: imagino algo como um “extrato da Justiça”, no qual seja possível consultar todos os processos, certidões e registros do cidadão em um só lugar. Imagine quanta burocracia seria evitada!
Integração para um setor público proativo
Essa integração abriria espaço para um setor público proativo, capaz de antecipar necessidades e orientar o cidadão antes mesmo que ele precise buscar o serviço, evitando o atual labirinto de cadastros e buscas.
O livro “Transformação Digital, Tecnologia e Inovação nos Estados Brasileiros: os Caminhos Propostos para o Período de 2023-2026”, de Beatriz Brasileiro Lanza (Consultora de Governo Digital no Inter-American Development Bank e Pós-Doutora em Gestão Urbana pela PUCPR), reforça essa perspectiva.
Este trabalho analisou 1.343 Planos de Governo de 85 candidatos e governadores eleitos nas 27 unidades da federação, identificando avanços e gargalos no uso de tecnologia e inovação pelos estados.
Engajar a população na criação de soluções
Outro ponto crítico, na minha concepção, é o baixo engajamento da população na concepção de soluções digitais. Embora existam mecanismos como ouvidorias, audiências públicas e consultas populares, eles raramente são usados de forma efetiva e, quando são, não garantem que a opinião do cidadão seja incorporada ao desenvolvimento. É preciso transformar o ato de ouvir o usuário em regra — e não exceção — no setor público.
Educação digital como política pública
Também acredito que não basta ter plataformas acessíveis se falta letramento digital. É preciso investir em educação digital desde a escola, capacitando professores e criando ambientes simulados para ensinar a navegar pelos serviços públicos. Não falo nem em criar disciplinas específicas com essa finalidade, como algumas correntes de pensamento defendem, e sim abordar esse tipo de temática de maneira transversal entre as disciplinas relacionadas.
Inegavelmente, o governo digital que precisamos combina tecnologia fluida, empatia no desenho de serviços, dados integrados, proatividade e participação real das pessoas.
Mais do que um ‘app bonito’, estamos falando na construção de uma cultura de atendimento público que respeite o tempo, a realidade e a dignidade do cidadão. Faz sentido para você?
Rafael de Tarso é palestrante, consultor e professor com mais de 20 anos de experiência em inovação, transformação digital e Indústria 4.0. Já impactou mais de 180 empresas e 6 mil alunos em cursos, workshops e mentorias em todo o Brasil. Atua como assessor na Defensoria Pública do Paraná, liderando iniciativas de inovação e transformação digital no judiciário. Cofundador de startups e programas de inovação, também é professor em MBAs da FGV, PUCPR e ISAE-FGV.