Toda empresa quer ter uma cultura forte. E não é para menos. Cultura se tornou o diferencial estratégico das organizações. Ela define comportamentos, orienta decisões e sustenta o propósito da empresa. Mas, como em tudo que é poderoso, há um limite tênue entre a virtude e o vício. E é justamente sobre esse risco que quero refletir.
Nos últimos meses, um caso envolvendo uma grande franqueadora brasileira ganhou repercussão e acendeu um alerta importante: será que estamos confundindo cultura com doutrinação? Propósito com devoção? Engajamento com culto? Quando a cultura organizacional passa a exigir fé cega, ela deixa de ser cultura e se transforma em algo muito mais perigoso: uma seita corporativa.
Sim, isso está acontecendo, e mais do que se imagina.
Uma das características mais preocupantes é o culto exagerado à personalidade do líder. Não é novidade que as pessoas querem se conectar com histórias reais, com causas, com propósitos. Por trás de todo CNPJ, há um CPF, e isso é legítimo. Mas há uma linha tênue entre inspirar e ser idolatrado.
Quando o líder começa a ser visto como infalível, quase sagrado, sua imagem se torna intocável. E qualquer questionamento passa a ser interpretado como traição. É o primeiro passo para que a cultura perca sua função estratégica e vire instrumento de controle emocional.
Criar rituais corporativos pode ser uma excelente ferramenta de coesão. O problema é quando esses rituais ganham simbologias tão espiritualizadas que perdem o vínculo com a realidade do trabalho. A pergunta que sempre deve ser feita é: “O que estamos fazendo, por que estamos fazendo e como isso se conecta com nosso propósito?” Se ninguém souber responder com clareza, talvez você já tenha ultrapassado o ponto seguro.
Outro ponto perigoso é o discurso da “família corporativa”, quando essa família se transforma num grupo sectário. O “nós” contra “eles”. Um círculo fechado, onde só é aceito quem se encaixa perfeitamente no molde.
Já vi empresas onde a diferença é reprimida, e a diversidade é apenas simbólica. Onde se veste igual, se fala igual, se pensa igual. Isso não é coesão. É uniformização. E uniformização gera mediocridade.
O medo, muitas vezes, é o motor silencioso da obediência. A cultura se torna tão emocionalmente carregada que aqueles que não se entregam de forma passional são vistos como “desalinhados”. Não raro, acabam excluídos, rotulados como “sem fit”, e desligados.
E o que falar do controle da vida pessoal? Quando a cultura avança sobre a forma como você se comporta fora do expediente, sobre decisões íntimas, como ter filhos, casar, ou até como se vestir, estamos diante de um cenário de dominação. Isso não é mais cultura empresarial. É controle. É violação.
Na virada do milênio, com a ascensão da economia digital e das startups, vimos o surgimento da chamada cultura de tribo. Empresas como Google e Apple criaram identidades próprias para seus colaboradores (os Googlers, os Think Differents…), em busca de engajamento e pertencimento.
A ideia era boa. Mas o efeito colateral foi perigoso: o pertencimento virou idolatria. Os líderes, muitas vezes vaidosos e com exposição pública crescente, se tornaram gurus. E qualquer discordância passou a ser tratada como ameaça. O problema? Culturas assim são como castelos de cartas. Basta uma pessoa questionar, uma só, para tudo desmoronar.
Então, o que é uma cultura forte, de verdade? Cultura forte não é unanimidade. É direção. Você não precisa de 100% dos colaboradores completamente alinhados. Se tiver mais da metade engajada de forma autêntica, já tem uma base sólida. Mas atenção: engajamento verdadeiro é voluntário. E só é possível em ambientes onde a individualidade é preservada. Onde o propósito é compartilhado, e não imposto. Onde há espaço para ouvir de cima para baixo, e de baixo para cima.
Aponto quatro caminhos para não transformar sua empresa numa seita. O primeiro é compartilhe, não imponha. Cultura deve ser aderida, não forçada. Recrute por fit cultural, mas respeite quem pensa diferente. Em seguida, diversidade real, não simbólica. Unidade de propósito não exige uniformidade de comportamento. Estética e estilo não definem competência. O terceiro são rituais com sentido prático, que devem estar conectados ao dia a dia do trabalho. Se forem apenas simbólicos, viram dogmas.
E, por último, a comunicação deve seguir em todas as direções. Ouça, sempre. E principalmente os desconfortos. Eles são alertas valiosos sobre a saúde da sua cultura.
Uma boa cultura organiza, orienta, engaja. Mas jamais apaga a identidade individual. Jamais exclui quem pensa diferente. E jamais transforma o líder num mito. Se você precisa doutrinar para manter as pessoas dentro, talvez sua cultura não seja forte, seja apenas autoritária.
E mais cedo ou mais tarde, ela vai ruir.
Adeildo Nascimento é economista formado pela UFPR, com especialização em Gestão de Pessoas e Liderança, com atuação em empresas nacionais e multinacionais, incluindo Bosch, GVT, HSBC, MadeiraMadeira e Fiep. Também é fundador DHEO Consultoria, especializada em cultura organizacional.
www.dheoconsultoria.com.br e www.adeildo.com