Assim que recebi o convite do Filipi Oliveira para contribuir aqui em O Luzeiro, passei a pensar em uma linha de conteúdo e em um título. O conteúdo foi fácil – as histórias de famílias empresárias – que seguem sendo o propósito da minha vida profissional. Com tanta história boa pra contar, o título aí em cima foi uma consequência, pensando em informar, inspirar, ou quem sabe até guiar outras boas histórias. Então aqui vai a primeira…
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Já é bem divulgado que no Brasil e no mundo as empresas familiares são a imensa maioria na atividade econômica. Na média global elas são cerca 85 a 90% do número de empresas, com mais de 65% de participação no PIB, e 75% na geração de empregos. Ao evoluírem em suas histórias, assim como o adolescente vira um adulto, a empresa familiar se transforma em uma Família Empresária. Sim, são conceitos diferentes, e esta última é a evolução da primeira. Enquanto a empresa familiar é um arranjo de esforços, vínculos, relacionamentos e afetos conectados ao empreendimento, ao progredirem com sucesso até um novo estágio evolutivo, as organizações familiares precisam lidar de forma mais técnica, complexa e segregada, com os temas da propriedade (cotas, patrimônio e dividendos), da família (papéis, potencial, preparo, e perspectivas) e da gestão (estratégia, organização e controle, inovação e ambiente competitivo).
Nesse estágio podemos ter o controle da propriedade nas mãos de um ou mais grupos familiares, e membros da família exercendo adequadamente seus papéis na gestão, mas invariavelmente um tema passa a circular nos corredores, quase como um tabu, guardado a sete chaves na mente e no coração dos fundadores: a sucessão. Não é nada raro ver este assunto sendo arrastado, procrastinado intencionalmente, por longos anos sem o devido cuidado e planejamento. Sem privilégios, essa é uma angústia em todos os portes de empresas e patrimônio familiar, mesmo dizendo respeito a uma pauta extremamente valiosa, monetariamente e emocionalmente. Infelizmente, e menos raras do que se pensa, são as situações em que o tema da continuidade acaba sendo uma conversa incômoda, e muitas vezes conflituosa, que a família precisa tratar na volta de um funeral. Pode valer um legado. E o impacto pode persistir por muito tempo. Até gerações!
Apesar de ser previsível, e até desejado, que a sucessão ideal seja aquela que aconteça “de pai para filho(a)”, a realidade em certos grupos familiares pode ser outra, e bem mais complexa, por conta dos desdobramentos mais relacionais e emocionais.
Não tenho sucessor. Mas está tudo bem.
Há anos atrás fui chamado por um fundador para apoiá-lo em um projeto de redesenho organizacional, com foco em governança, fortalecimento da cultura de desempenho, inovação e criação de valor. Tudo evoluiu muito bem, e em pouco mais de 2 anos a empresa ganhou mercado, musculatura decisória, e uma geração de caixa inédita. Mas quando fui organizar as diretrizes de médio e longo prazo, incluindo o plano sucessório da empresa – já que o filho mais velho ocupava uma das principais diretorias – o cliente me chamou para um jantar e me confidenciou, até com certa serenidade: “O negócio cresceu mais do que meus filhos quiseram crescer com ele. Meu filho disse não se ver no meu lugar à frente do negócio. Eu gostaria de organizar um processo de avaliação dos ativos, e ir a mercado para a venda, e também preciso de apoio para comunicar à família a minha decisão. E tudo bem, Damigo! Eu também não fui feito para ser o advogado que meu pai queria.”
Mesmo admirado, compreendi que toda esta serenidade no modo de pensar e agir veio com os anos de estrada, que acabaram definindo uma maturidade incomum para lidar com uma equação difícil. Mas preciso dizer que essa história é uma boa ilustração de um dilema silencioso que ronda muitas outras Famílias Empresárias: o que fazer quando a empresa não tem um(a) sucessor(a) da família – ou quando até há, mas ela ou ele não está preparado(a) ou tem outros planos de vida?
Como lidar com esse dilema? O Brasil está atravessando um momento emblemático, onde organizações familiares importantes, com marcas protagonistas, estão atingindo seus ciclos de transição. Segundo a consultoria PWC, apenas 35% das Famílias Empresárias pesquisadas tem um plano de sucessão, e destas apenas 15% revisam seu plano periodicamente. Isso cria um risco sistêmico: empresas ao fim do ciclo familiar, sem sucessores preparados e alinhados com o legado, mas com valor institucional e econômico significativo, precisam lidar como novas estratégias de continuidade. Um estudo publicado pelo Instituto Nacional de Estatística da Espanha (provavelmente semelhante ao nosso IBGE) com base em 2023, mostra que o “índice de envelhecimento” do país segue crescendo, atingindo um expressivo indicador de 137%. Isso significa que existem 137 pessoas com 65 anos ou mais, para cada 100 pessoas com 16 anos ou menos. O reflexo desta assimetria no topo do controle patrimonial das empresas é exatamente o mesmo.
À medida que os empresários envelhecem e já precisam se imaginar passando o bastão, inicia uma certa ansiedade e urgência por uma sucessão – aquela mesmo que eu acabei de falar que se arrasta na procrastinação da pauta – sem que tenha sido alvo do planejamento adequado. O negócio, o patrimônio e o legado, e a garantia de liquidez do futuro familiar podem estar sendo colocados em risco.
O futuro pode exigir o traçado de uma nova rota.
Recentemente a Plurix, que é uma holding de varejo alimentar que funciona como veículo de investimentos do fundo Pátria Private Equity VI, adquiriu de Teobaldo Costa, um ex-feirante, empacotador e ambulante, o controle da rede baiana Atakarejo, que figura entre as 30 maiores do país, e talvez a maior da região Nordeste. Segundo dados divulgados, o Pátria desembolsou R$ 700 milhões na transação, e 44% das ações ainda permanecem nas mãos de Teobaldo, que fez um movimento pivotal corajoso e bem assessorado, mesmo com um filho bem-sucedido na vida executiva. Nesse novo arranjo, o grupo familiar trocou controle por liquidez, a governança foi fortalecida, a estratégia foi consolidada a um movimento muito maior (a Plurix seguiu com uma série de outros investimentos), e o fundador permaneceu sendo a referência no negócio e na marca.
Olhando para o exterior, um outro caso de sucessão fora da família seguiu uma rota bem diferente, baseada na continuidade adicionada de muito propósito. Yvon Chouinard, fundador da tradicional marca de vestuário Patagonia, e conhecido por inúmeras ações filantrópicas em prol do meio ambiente, doou a empresa bilionária a uma organização sem fins lucrativos, sob o compromisso de que revertam 100% do lucro (cerca US$ 100 milhões) a ações de combate às mudanças climáticas. Chouinard, sua esposa Malinda, e os filhos Fletcher e Claire, estarão na Patagonia Purpose Trust, vigilantes na governança, para garantir este compromisso. A marca segue viva, fiel a seus princípios, e mais admirada do que nunca.
Notem que em todos os casos houve a mesma maturidade de reconhecer que a continuidade do negócio não precisou, necessariamente, ser familiar – com o legado e a transição sendo respeitados e cuidadosamente planejados. Sem uma sensação de renúncia (luto) ou apego. Transformando o legado empreendedor em um fio condutor de liberdade entre as gerações. Vender o negócio não precisa ser encarado como uma “traição”, mas sim uma forma nobre e inteligente de sucessão em muitos casos. Especialmente quando ela preserva os valores da empresa, empregos, vínculos com a comunidade e clientes, e podendo honrar o nome da família, mesmo sob uma nova bandeira societária.
Você já refletiu se sua organização e família estão preparados para esse tipo de conversa? Você está preparado ou o seu plano de sucessão ainda é um plano secreto? Tipicamente, recomendo uma sequência de ações que envolvem a análise da maturidade e competências-chave para a sucessão, tornar a arquitetura do legado parte indissociável da estratégia, explorar e testar a viabilidade das diversas teses de sucessão, implementar a governança, documentação societária, e instrumentos de apoio à decisão, e monitorar periodicamente as métricas de desempenho e criação valor para nortear o momento certo das decisões.
Gostaria muito que estes casos e experiências pudessem abrir espaço na sua pauta de compromissos com o futuro. Pode ser um passo libertador e estratégico para garantir que a história da sua empresa – com ou sem sucessores – venha a ser contada como um exemplo de propósito e solidez. E tudo isso com uma tranquilidade patrimonial e financeira de quem pode escolher, em paz, o modo que quer organizar seu “Calendário B”.
José Damigo é especialista em governança, sucessão e planejamento estratégico. Também atua como conselheiro, consultor e mentor especializado em Famílias Empresárias. www.linkedin.com/in/jose-damigo-neto-3064261/