O século XX marcou uma profunda mudança para a humanidade: da era dos cavalos fomos à era do automóvel. E, no Brasil, podemos dizer com relativa certeza que mergulhamos de cabeça nessa. A frase “governar é fazer estradas”, por vezes atribuída ao presidente Juscelino Kubitschek, é na verdade do então governador paulista – e futuro presidente – Washington Luís, na década de 1920. E ela deu o tom de como seria feito o transporte por aqui: pela via rodoviária.
Curitiba iniciou os anos 1900 com bondes circulando pela cidade. Inicialmente, com tração animal, depois alimentados com energia elétrica. Mas, eles acabaram ficando no caminho dos carros e foram retirados na década de 1950. Estranho que em muitas cidades do mundo eles sigam operando, em harmonia com trânsito e pedestres, na forma dos modernos “Trams”. Além de bonitos, silenciosos e não poluentes, dão um charme especial à paisagem urbana. Mas, isso é assunto para um outro momento.
O título deste texto faz um paralelo com a frase de Washington Luís e um direcionamento muito nítido da administração da Prefeitura de Curitiba, cidade onde moro e morei pela maior parte da minha vida. Aparentemente, há várias gestões, a intenção do governo municipal é agilizar o trânsito de carros, criando vias rápidas, de maior capacidade e conforto para os motoristas. E o que há de ruim nisso, vocês podem me perguntar. E respondo: essa política está matando o sossego dos nossos bairros.
Seja no Bacacheri, na Vila Fanny, no São Lourenço, no Água Verde, no Hauer, na Vila Izabel ou no Santa Quitéria, a abertura de binários torna o trânsito intenso e obviamente mais rápido. Como pedestre na maior parte do tempo, é nítida a diferença. Pessoas sofrem para atravessar ruas que antes eram calmas. O tráfego intenso gera ruído, poluição e retira vagas de estacionamento, que antes eram usadas tanto por moradores como por clientes de pequenos negócios. O beneficiário dessa política é apenas o usuário de transporte motorizado individual – automóvel e motocicleta.
Não à toa, essas facilidades geram consequências. Curitiba já tem quase um carro por habitante, segundo os dados mais recentes. O que muitos veem com orgulho e sinal de pujança econômica é na verdade um sintoma de uma cidade com transporte público desinteressante e insuficiente. Não há muito como competir em conforto com o transporte individual, convenhamos, mas a alternativa seria fornecer uma solução com custos mais baixos e, principalmente, conveniência e rapidez.
E os dados do sistema de ônibus confirmam o problema. Abatido pela pandemia, o número de passageiros transportados se recupera de forma muito lenta. Em 2018, a média era de 790 mil pessoas transportadas por dia, ante 590 mil em 2024
Além disso, o pagador de impostos já banca uma relevante parte do custo do transporte coletivo na capital, por meio de subsídios. Não se trata aqui de demonizar a prática, que é usada nas maiores cidades do mundo. Mas, apenas de apontar que ela não tem resultado em benefício para os passageiros, pois Curitiba tem uma das tarifas de ônibus mais caras do Brasil.
Passagem cara e sistema que leva em conta a própria conveniência – e não a do passageiro – levam a uma perda de usuários cada vez maior. É inevitável a mudança de paradigma do ônibus curitibano, assim como foi inevitável a mudança de paradigma da cidade, que não é mais organizada com foco no Centro. Agora, as pessoas se deslocam de bairro a bairro.
Lamento dizer também que a obra do Inter 2 não será a solução para nossos problemas. Num contexto cada vez mais dinâmico de deslocamentos, agilizar a viagem entre os obsoletos terminais de ônibus só vai aliviar um pouco a tortura a que são submetidos os curitibanos que dependem do sistema.
Meus amigos me conhecem como “pregador” em alguns assuntos. E no caso do ônibus, como alguém que já viveu outro paradigma, em São Paulo, digo e repito: só a integração temporal a uma completa reestruturação do sistema vai salvar o, outrora exemplar, sistema de transporte público de Curitiba. E o que isso tem a ver com binários? Quem precisaria de tantos deles se houvesse menos carros nas ruas? Teríamos nossos bairros de volta, com mais sossego, mais caminhadas, menos barulho e menos acidentes.